Precisamos falar sobre estupro
Mais um dia de revolta. Alguém tinha dúvida de que aconteceria de novo? Diego Novaes, o homem que ejaculou no pescoço de uma passageira num ônibus na Avenida Paulista na última terça-feira, 29, foi preso hoje pela manhã novamente. Ele esfregou o pênis numa mulher e tentou, à força, impedir que ela fugisse. No primeiro caso, ele não ficou nem 24 horas detido.
É a quarta vez que esse sujeito é detido por denúncia de estupro. Ao todo, ele já teve 17 passagens pela polícia, todas relacionadas a crimes sexuais. É possível que outras das 13 não tenham sido caracterizadas como estupro por decisão judicial, como ocorreu na última terça. “Entendo que não houve constrangimento tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus, quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado”: essa foi a decisão do juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto.
Essa decisão judicial foi a segunda violência contra a vítima e torna o juiz cúmplice do crime. “Estou me sentindo um lixo”, disse a vítima, chorando, ao saber da decisão. A força da impunidade pesou, e outra mulher foi violentada.
Buscando as origens
Será que esse é um caso isolado, uma decisão individual? Não. Está muito longe disso. Matéria do G1 diz: “Esse também é o terceiro caso de violência sexual contra mulheres nesta semana na capital – dois deles atribuídos a Diego.” Acontece que, a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. Estamos falando de 131 casos por dia. Não é possível que, na maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo, apenas três casos tenham ocorrido em uma semana, cometidos por apenas dois agressores. E foi justamente na capital paulista que os casos cresceram 31% só no primeiro semestre segundo dados da Secretaria de Segurança Pública.
Usamos esse exemplo para dizer que o problema é muito mais profundo e temos de falar sobre ele, gritar sobre ele. Há uma banalização da violência contra a mulher que é culpa não apenas dos homens. É deles também. Contudo, se focarmos nisso de modo simplista, como se a sociedade estivesse dividida por mulheres de um lado e homens de outro, nunca resolveremos o problema. É preciso buscar a raiz dessa barbárie.
Todo homem que comete um ato de violência contra uma mulher, ainda mais uma violência sexual, deve ser punido. Ele é responsável pela sua ação. No entanto, mais do que isso, a violência contra a mulher é uma forma de controle social em que o estupro tem lugar privilegiado. Existem diversos fatores, quase sempre de fundo ideológico, que, sem percebermos, levam à naturalização da violação sexual. Programas de televisão fazem apologia aberta ao estupro. A culpabilização da vítima é outro fator. Falsas ideias são repetidas como um mantra sem reflexão: “ela estava bêbada”; “a roupa era curta”; “ela provocou”; “o que ela estava fazendo naquele lugar àquela hora?”; “por que não denunciou?”; e por aí vai.
Ultimamente, também vimos aumentar os casos de estupros coletivos. Muitas vezes, a motivação é punitiva. Para ficarmos em apenas um exemplo, um dos mais brutais, foi o caso de uma garota de 16 anos que foi estuprada por mais de 30 homens no ano passado. Havia uma suposta traição da vítima ao namorado e, também, envolvimento com o tráfico. Se a vítima for lésbica ou transexual, as chances de ser violentada são ainda maiores. É o chamado estupro corretivo.
A mais bárbara e escancarada prova de que o estupro é uma forma de controle social é o seu uso como arma de guerra. A dupla moral da sociedade capitalista condena o estupro entre os indivíduos, mas o utiliza sem problema algum quando convém. O estupro subjuga e humilha o inimigo. Temos os casos da história recente do Iraque e do Afeganistão. Também há inúmeras denúncias no Haiti, na ocupação militar comandada pelo Brasil.
Se não foi sempre assim, pode mudar
O que não podemos perder de vista é que isso não é natural. Nunca será e tem de mudar. Isso acontece porque vivemos numa sociedade que já nasceu em cima da opressão à mulher. Não é coincidência que o machismo tenha surgido justamente com o aparecimento da propriedade privada. Se é certo que os homens individualmente se beneficiam com o machismo momentaneamente, também é certo que a sociedade capitalista se beneficia dele permanentemente e precisa da opressão para sobreviver.
É a lógica de dividir para mais explorar e lucrar. Enquanto homens e mulheres travam uma luta entre sexos aqui embaixo – o mesmo acontece com LGBTs, negras e negros, imigrantes –, na cúpula da sociedade um punhado de capitalistas ganham muito com isso, muito mesmo. Mulheres recebem salários mais baixos que os homens. Entre o conjunto das mulheres, as negras recebem menos ainda e são justamente elas as que estão no topo das estatísticas de estupro e de violência machista. E quem são as mulheres que necessitam do transporte coletivo? Exatamente as trabalhadoras, sobretudo as mais pobres.
Por falar em Estado, no mesmo dia em que aconteceu o primeiro ataque de Diego desta semana, o Metrô de São Paulo lançava a campanha “Juntos podemos parar o abuso sexual nos transportes”. É verdade, todos devemos denunciar qualquer caso, ajudar a garantir que o agressor não saia impune (na medida do possível, porque às vezes a vida de todos pode ser colocada em risco) e se solidarizar e acolher muito a vítima. Mas não é obrigação do usuário garantir a segurança nos transportes públicos.
É inadmissível e não podemos mais ver com normalidade o fato de que bilhões escoam pelo ralo com o pagamento de uma dívida (que não é nossa!) e em escândalos de corrupção, enquanto não há investimento em segurança pública, sequer o mínimo para garantir que uma mulher não seja violada no transporte público. Além de precários, na maioria das vezes, os ônibus, trens e metrôs estão tão lotados que não é possível nem identificar quem agrediu.
Os que mandam – governos e burgueses em geral – tentam enfiar em nossas cabeças que o machismo é um evento da natureza. Isso não faz sentido algum. Porém existe uma engrenagem que faz funcionar o capital que, essa sim, faz todo o sentido e explica por que as coisas são assim e não precisam continuar sendo. Felizmente, os casos de São Paulo mostraram solidariedade com as vítimas e ações para deter o agressor. Enquanto isso, o juiz, parte do sistema, preferiu soltá-lo e dar as condições para que outro crime fosse cometido.
Para sustentar essa engrenagem, existem as instituições. Os que fazem as leis contra nós, ou seja, a quadrilha do Legislativo, e os que as garantem, ou seja, a Justiça. O caso de São Paulo deixou evidente que a Justiça não faz justiça. Pelo menos não para todos. A impunidade é parte do controle social, dá segurança aos criminosos para continuarem agindo. Quanto ao Legislativo, temos um Congresso de bandidos que permite que um deputado, o repugnante Jair Bolsonaro, ameace e agrida outra deputada, Maria do Rosário, dizendo que ela não merecia ser estuprada porque era muito feia. Antes, em 2003, em frente a câmeras de TV, ele já havia dito a mesma coisa a ela, a empurrando e chamando de “vagabunda”. Ele continua na Câmara…
Como ilustra bem uma frase que circulou massivamente pelas redes sociais esta semana, “gozar nos outros dentro do busão pode, andar com Pinho Sol na mochila não pode”. Podemos ser mais profundos: roubar bilhões enchendo o bolso de banqueiros e empresários pode; retirar direito dos trabalhadores pode; deixar 14 milhões desempregados pode; permitir que pessoas vivam na miséria pode; mas se revoltar contra o sistema, não pode… Nesse último caso, as forças de repressão do Estado agem rapidinho.
O combate à violência e a todo tipo de opressão começa agora. Punir os agressores machistas e coibir a opressão, sim! Que as mulheres tenham o direito à autodefesa, sim! No entanto, não há jeito de acabar com o machismo sem derrubar esta sociedade e construir outra sobre novas bases, uma sociedade socialista. Uma sociedade que quebre a engrenagem capitalista para que não haja mais exploradores opressores nem explorados oprimidos.
Fonte: pstu.org.br