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“Lógica de usar torturadores da ditadura no crime foi usada nas milícias”

Paulo Malhães, torturador da ditadura, e Ronnie Lessa, PM reformado. Ambos foram para o mundo do crime. CNV / EFE
Paulo Malhães, torturador da ditadura, e Ronnie Lessa, PM reformado. Ambos foram para o mundo do crime. CNV / EFE

Aloy Jupiara, coautor de ‘Os porões da contravenção’, fala sobre o legado de profissionalização do crime deixado pelos anos de chumbo que perdura até hoje

 

O ditado “a polícia tem vários patrões” continua atual no Rio de Janeiro. As investigações do caso Marielle Franco, vereadora do PSOL brutalmente assassinada no dia 14 de março do ano passado junto com o motorista Anderson Gomes, jogaram luz na vida dupla de Ronnie Lessa, acusado de ter apertado o gatilho. Investigações apontam que ele ainda estava na corporação quando passou a fazer bico de segurança do bicheiro Rogerio Andrade. Até que, em 2009, sofreu um atentado a bomba e teve de se aposentar por invalidez por perder uma perna. No ano seguinte, outra explosão matou o filho do bicheiro, Diogo Andrade, minando a credibilidade junto ao contraventor. Fora da PM e deixado de lado pelo bicheiro, Lessa mergulhou de vez no mundo do crime. Com passagem pelo Exército, pela Polícia Militar, pelo BOPE e pela Polícia Civil — onde atuou como adido —, Lessa havia adquirido experiência e informação suficientes para colocar à venda para milicianos e contraventores aquilo que mais sabia fazer: matar.

Trajetória similar tiveram outros vários agentes públicos da ditadura militar brasileira (1964-1985). Como o capitão do Exército Aílton Guimarães Jorge, o coronel do Exército Paulo Malhães, o policial civil Luiz Cláudio de Azeredo Vianna ou o delegado Mauro Fernando de Magalhães, alguns dos personagens do livro Os porões da contravenção(Record, 2015), dos jornalistas Aloy Jupiara e Chico Otavio. Todos eles foram escalados pelo regime militar nos anos de chumbo — sobretudo após o Ato Institucional número 5 (AI-5), de 1968 — e treinados para perseguir, torturar e matar opositores de esquerda. Com o início da abertura política e o desmonte do aparelho repressor da ditadura a partir da segunda metade dos anos 1970, começaram a cair no ostracismo, abandonados pelo regime.

O livro narra então, com detalhes, como essas pessoas colocaram toda a experiência adquirida na inteligência e como torturadores e matadores dos porões do regime à serviço dos grandes bicheiros do Rio — com quem já mantinham relações corruptas, em maior ou menor grau, mesmo trabalhando para o Estado. “Essas pessoas se sentem sem abrigo, sem apoio dentro do Exército. Haviam deixado seus espaços de poder e queriam um espaço de poder novo”, explica Jupiara. A obra também mostra como também foi nessa época que o crime organizado serviu aos interesses da ditadura militar e contou com sua tolerância, e até conivência, para se expandir e se organizar no Rio.

Os momentos históricos nos quais estão inseridos esses personagens da ditadura e um matador como Ronnie Lessa não só estão interligados como se repetem. “Essa lógica de pegar repressores e torturadores para utilizar essa expertise do terror dentro crime organizado foi a mesma lógica que originou e criou as milícias. E que mantém uma ponte com o bicho também”, explica Jupiara. Para a professora Jaqueline Muniz, cientista política e antropóloga da Universidade Federal Fluminense (UFF), a autonomia que o Estado dá a repressores está diretamente relacionada com sua posterior migração para o mundo do crime. “O indivíduo se acostuma a ter um grau de autonomia, de liberdade para agir nas sombras. Então, eles não vão ficar sem trabalhar, eles têm uma mercadoria valiosa para vender. Ganham total liberdade e são verdadeiros arquivos vivos dessas práticas ilegais para resolver questões políticas”.

Na ditadura, o exemplo do capitão Guimarães é emblemático. Treinado na Polícia do Exército, na Vila Militar do Rio, o livro narra seu envolvimento em diversos pequenos casos de contrabando mesmo quando ainda estava à serviço da ditadura, em meados dos anos 1970. Seu envolvimento aumenta conforme a ditadura vai dispensando seus serviços. Em determinado momento, começa a controlar pontos do jogo do bicho e passa, ele mesmo, a ser um dos grandes chefes — até hoje. A disciplina e treinamento aprendidos nos quartéis são essenciais para a organização do negócio ilegal, que na época passava por uma grande reorganização e profissionalização. Se até então estava espalhado pela cidades através de pequenos territórios de jogo com uma liderança fragmentada, passa a ficar concentrado nas mãos de um poucos chefes que passam a controlar imensos territórios. “Aqueles bicheiros que estavam refazendo a estrutura de comando do bicho já tinham algum tipo de ligação com o regime ou com integrantes do regime na repressão”, conta Jupiara.

Guimarães chegou a ser condecorado por seus serviços à ditadura. Depois, foi deixado de lado. Assim como Ronnie Lessa, abandonado pela corporação após perder a perna, em 2009. Mas ele não é um caso isolado dos dias atuais. Se no final dos anos 60 o inimigo eram os militantes de esquerda, motivo pelo qual o regime militar montou seu aparato repressivo, a partir dos anos 90 o inimigo público se torna os traficantes de drogas armados nas favelas. Uma nova justificativa para o Estado se rearmar e colocar na rua sua estrutura repressiva que contava com agentes policiais como Lessa, que chegou a ser condecorado.

Assim como ele, outros policiais militares e civis que acumularam experiência tanto na repressão e como no setor de inteligência acabaram no mundo do crime. É o caso de Adriano Magalhães da Nóbrega, miliciano ligado ao Escritório do Crime, de Rio das Pedras, e que hoje está foragido. Quando estava na cadeia, chegou a ser condecorado pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro, que também empregou dois de seus parentes em seu gabinete. “Esses indivíduos ainda eram tratados com medalhas e honrarias, uma maneira de disfarçar as práticas ilegais, heterodoxas e clientelistas que eles faziam para seus diversos patrões”, explica Muniz.

A lista continua. Nela também está o ex-policial Marcos Falcon, que presidiu a Portela, chegou a ser preso sob a suspeita de pertencer a uma milícia e acabou assassinado em 2016 dentro de seu gabinete quando concorria a vereador, um crime que não foi desvendado. Também está o miliciano Orlando Curicica, policial militar que trabalhou na Divisão Anti-Sequestro (DAS) da Polícia Civil e hoje está preso — chegou a ser apontado como um dos autores do assassinato de Marielle. Ou o sargento da PM Geraldo Antônio Pereira, que também foi cedido para a DAS, migrou para o crime e acabou executado em 2016.

O sociólogo José Cláudio Souza Alves, que estuda as milícias do Rio de Janeiro há 26 anos e é autor do livro Dos Barões ao extermínio: a história da violência na Baixada Fluminense, também acredita que os milicianos são uma continuação natural dos grupos extermínio que, apesar de sempre existirem, ganharam força na ditadura. Com o final do regime, esses grupos dão um passo atrás ao mesmo tempo em que passam a se unir a lideranças civis locais para disputar o poder político. Ao contrário do tráfico de drogas, esses paramilitares atuam dentro do Estado. “Se a milícia é o próprio Estado, então eles investigam, controlam as informações, operam o Judiciário, vão apagar pistas e ocultar informações de quem não querem”, explica.

Atualmente, num Rio controlado por um crime organizado que está infiltrado na política institucional, as fronteiras entre milicianos, chefes do jogo do bicho e traficantes de droga são cada vez mais porosas. Há disputa de território, resolvida com perseguição e morte. Mas há também parceria e pontos de interseção entre um e outro. “Hoje existem máquinas de caça-níquel espalhadas no fundo de bares que estão em áreas controladas pelo tráfico também. Como não imaginar que não há um pacto de convivência entre eles?”, questiona Jupiara. Em outras palavras, o Rio não é uma “cidade partida”, expressão cunhada pelo jornalista Zuenir Ventura, mas sim “retalhada por grupos que criam barreiras ou canais de diálogo entre si”, acrescenta o autor. A investigação do caso Marielle, opina, pode ser a oportunidade de colocar um fim nessa metástase.

Como o regime militar tolera expansão do crime

A ligação da ditadura com o crime organizado era também política. Além dos agentes da repressão que atuavam no mundo do crime, Alves, que também colaborou com o livro, conta que a ditadura chegou a se valer da estrutura do jogo do bicho para se infiltrar em zonas periféricas, como a própria Baixada Fluminense, para se livrar da oposição de esquerda. Em determinado momento, explica, “a ditadura diz que não vai acabar com o jogo do bicho sob a condição de que fossem os olheiros do regime”. Para facilitar o trabalho, o primeiro presidente militar, Humberto Castelo Branco, edita um decreto permitindo que as Câmaras dos Vereadores derrubassem sumariamente os prefeitos acusados de corrupção ou improbidade. Isso fez, por exemplo, com que Nova Iguaçu, um grande bolsão populacional essencial para o regime, tivesse oito prefeitos em oito anos, conta Alves.

“O terceiro passo vai ser o controle que a ditadura almejava, que são esquadrões da morte. Só que, como a milícia nos dias de hoje, aquele aparato só tem poder porque ele tem duas faces, a legal e ilegal”, explica o professor. É por dentro do Estado que o agente público de segurança. “O sujeito que opera na ponta do sistema de justiça, que investiga, reprime, autua”, completa o sociólogo. A face ilegal, por outro lado, vai se dar através de uma expansão desse estado autoritário, que “dá um poder absoluto e totalitário para esses agentes, que acabam ficando acima da dimensão legal e vão atuar na franja do Estado, indo para uma dimensão incontrolável”.

Foi nesse contexto de controle político e social de zonas periféricas que ascende um dos maiores bicheiros do Rio, Anísio Abraão David. Seu grupo político controla até hoje o município de Nilópolis, na zona metropolitana do Rio, e a escola de samba Beija-Flor. “Parentes de Anísio se relacionavam com pessoas do regime militar para denunciar a posição, tomar o poder político local e garantir que não vai haver espaço para opositores naquele momento”, conta Jupiara. Personagens ligados a família se filiaram a Arena, partido que dava sustentação a ditadura, para disputar também politicamente aqueles territórios. Um exemplo é o de Simão Sessim, deputado federal até a ultima legislatura e representante da família. “O exemplo maior dessa relação são os três enredos que a Beija-Flor vai fazer de louvação ao regime militar nos anos de 73, 74 e 75”, explica Jupiara. O autor do livro argumenta que a escola de samba entra como “um espaço de legitimação popular dessas pessoas e famílias”, que tinham “um poder baseado na força, na arma e na morte, mas tambem precisavam do apoio das pessoas de onde eles dominavam”.

Foi também por causa desse alinhamento que os chefes do bicho passam a ter contatos mais fluídos com muitos integrantes das forças repressivas dos porões da ditadura. Um dos empregados de Anísio, chefe supremo da Beija-Flor e de Nilópolis, foi o coronel do Exército Paulo Malhães. Torturador da ditadura, atuou no Centro de Inteligência do Exército (CIE) e na Casa da Morte, centro de tortura clandestino em Petrópolis, região serrana do Rio. Ao entrar para a reserva, em 1985, se juntou de vez ao bicheiro. Em 2014, revelou em uma entrevista ao jornal O Dia seu envolvimento com a morte e desaparecimento do então deputado federal Rubens Paiva. Acabou morto dias dentro de sua casa por dois homens, gerando a suspeita de queima de arquivo, algo que não foi confirmado.

 

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