Está explodindo uma bomba-relógio que ninguém quis ver
Filósofo da USP diz que bravatas de Bolsonaro tiram o foco de projeto econômico rejeitado pela maioria e que nunca um candidato retirou a discussão do espaço público
Para filósofo, com Bolsonaro, campanha saiu do espaço público e se deslocou para o ambiente virtual
Os posicionamentos de Jair Bolsonaro (PSL) sobre pautas identitárias, como os direitos das mulheres e LGBTs, dominaram o debate eleitoral no primeiro turno e atraíram o foco das atenções internacionais. Na leitura do filósofo Vladimir Safatle, professor da Universidade de São Paulo (USP), as declarações são utilizadas pelo candidato a partir de um cálculo estratégico para esvaziar a discussão política.
Em entrevista à DW Brasil, Safatle argumenta que a rejeição da sociedade brasileira a medidas neoliberais trouxe o país a uma situação “atípica” no cenário global, com universidades gratuitas e duas das maiores empresas do país sendo públicas.
“Os defensores dessa agenda compreenderam que a única maneira de impor suas reformas seria de uma maneira autoritária”, afirma. “Só tinha um jeito de ser implementada: escondendo-a, não deixando que fosse claramente exposta e tematizada”.
DW: Como explicar a crescente adesão ao autoritarismo no Brasil?
Vladimir Safatle: Nada da situação atual é compreensível sem remetermos ao que aconteceu com o fim da ditadura militar. O Brasil fracassou redondamente em conseguir superar seu passado ditatorial, que volta a assombrar agora. Nenhum país da América Latina tem um risco tão explícito de militarização e mesmo de um golpe de Estado nos moldes tradicionais quanto o Brasil. Nenhum tem uma presença tão forte das Forças Armadas no cotidiano da vida pública. Isso mostra, muito claramente, que a solução conciliatória produzida pela transição em direção à democracia foi a maior covardia histórica que o país conheceu.
Esse passo conciliatório conservou setores da classe política que estavam completamente vinculados à ditadura, assim como preservou, no seio das Forças Armadas, uma mentalidade de justificativa de situações de exceção que volta agora. Também preservou, no seio da sociedade civil, um potencial de apoio a governos aparentemente fortes e autoritários devido ao fato de o Brasil, em momento algum, ter imposto um dever de memória e justiça de transição, que seria fundamental para que não estivéssemos vendo regressões como as de agora.
DW: E qual foi o papel da Constituição de 1988, que acaba de completar 30 anos, nesse processo?
VS: A Constituição de 88 foi a expressão dessa grande política conciliatória. Fala-se muito que é uma constituição cidadã, que garante direitos fundamentais. Por um lado, foi uma constituição sem vigência. Até hoje, tivemos 95 emendas constitucionais – mais ou menos três por ano. Para aprovar uma emenda, o Congresso precisa de dois terços. No caso brasileiro, essa negociação dura meses. Chega-se a uma conclusão muito clara de que a função do Congresso Nacional desde o fim da Constituinte foi simplesmente desconstituir a Constituição. Ela já nasceu com esse selo.
Por outro lado, 30 anos depois, há leis constitucionais que nunca foram implementadas por falta de lei complementar. É uma aberração. A lei que estabelece o imposto sobre grandes fortunas é constitucional e nunca foi aplicada, por mera falta de lei complementar. A Constituição nasce letra-morta.
Por outro lado, ela era também resultado de uma grande estrutura de conciliação entre vários setores da sociedade brasileira, inclusive ligados à vida militar. O Exército chegou com 28 parágrafos fechados, praticamente empurrados goela abaixo aos constituintes. Entre eles, o artigo que define a função das Forças Armadas. No caso brasileiro, a preservação da ordem, outra aberração completa, porque a função delas é a defesa da integridade do território nacional e ponto. Logo, o que está explodindo hoje era uma bomba-relógio que ninguém quis ver.
DW: É possível pensar em um governo Bolsonaro nos moldes tradicionais, articulando no Congresso para governar com maioria?
VS: Dentro de um possível governo Bolsonaro, várias opções se colocam à mesa. Elas vão depender muito dos sistemas de resistência que ocorrerão. Agora, é importante lembrar algumas coisas. A primeira delas é que o Brasil é uma certa aberração do ponto de vista dos ajustes neoliberais até hoje.
Devido aos pactos da Nova República, não havia condição de avançar muito, tampouco de regredir. Havia forças sociais claramente constituídas que criavam um certo equilíbrio. Isso fez, por exemplo, que os grandes ajustes neoliberais aplicados em outros países latino-americanos, como a Argentina, não fossem feitos aqui.
O Brasil chega em 2018 com duas de suas maiores empresas sendo públicas, assim como dois entre seus maiores bancos. Além disso, com um sistema de saúde que cobre 207 milhões de pessoas e é gratuito, universal, coisa que nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes tem. Há, também, 57 universidades federais completamente gratuitas.
Não são universidades para a elite. Só na USP, 60% dos alunos vêm de famílias que ganham até dez salários mínimos. Percebe-se que o brasil chega aos dias atuais numa situação muito atípica do ponto de vista do neoliberalismo.
Os defensores dessa agenda compreenderam que a única maneira de impor suas reformas seria de uma maneira autoritária, como no modelo chileno do Pinochet. É um neoliberalismo claramente autoritário, diferente do que se tem na Europa. Lá, a extrema direita é antiliberal, protecionista, que incorpora certas pautas sociais vindas da esquerda e usa a luta contra o sistema financeiro em seu discurso.
Exatamente por isso, o neoliberalismo na Europa tem que ser implementado por figuras mais ao centro. Não é o que acontece no Brasil. Até porque pesquisas mostram que 68% da população brasileira são contra as privatizações; 71%, contra reformas nas leis trabalhistas e 85% contra reformas na previdência.
DW: A adoção dessa agenda seria, portanto, eleitoralmente inviável?
VS: Só tinha um jeito de ser implementada: escondendo-a, não deixando que fosse claramente exposta e tematizada. A única forma de fazer isso era alimentar e ressuscitar os piores fantasmas autoritários da sociedade brasileira, colocando-os no centro do debate político. Todas essas bravatas preconceituosas são peças fundamentais na estratégia retórica de anulação do espaço político. O que nós vimos foi uma anticampanha, baseada no esvaziamento do espaço político, exatamente por meio desse tipo de provocação às minorias vulneráveis – negros, mulheres, LGBTs – que se revoltam, com toda a justiça, e esse jogo ocupa toda a cena da campanha.
Por um lado, um potencial fascista que estava mais ou menos recalcado ganha direito de existência e aflora de maneira muito forte. Isso vem de longe. A ditadura militar teve apoiadores, e a gente conhece muito bem o padrão racista e preconceituoso de vários setores da sociedade brasileira. Por outro lado, há um elemento fundamental e absolutamente impressionante: a campanha sai do espaço público e se desloca para o ambiente virtual, difícil de ser partilhado pela sociedade. Nesse espaço, a produção contínua de imagens e vídeos falsos de forte apelo retórico, que podem ser partilhados, acabam dando o tom.
Vimos o que aconteceu com os atos do sábado retrasado: grandes manifestações populares que ocuparam as ruas do Brasil e, de repente, foram anuladas. Ninguém estava sabendo exatamente o que aconteceu. Justo após essas manifestações, Bolsonaro teve um salto nas pesquisas. Depois, fomos entendendo. Com uma organização impressionante, uma rede muito vasta de circulação de imagens, profissionalmente constituída, tentou anular o ato pela construção de um evento falso no lugar. Faziam circular fotos que não tinham nada a ver com aqueles protestos, com o objetivo claro de denegrir suas propostas. Conseguiram anular um evento de rua por meio de uma mobilização virtual.
Esses dois elementos constituem um outro modelo de campanha completamente fora dos padrões tradicionais da democracia liberal. Ela já tem seus limites, mas era obrigada a conservar um espaço público no interior do qual a sociedade, como um todo, podia operar um embate. Esse elemento foi brutalmente retirado. O candidato Bolsonaro levou uma facada e passou a campanha inteira fora dela. Todas as vezes em que seu vice ou economista fazia alguma declaração, eram falas catastróficas, imediatamente rechaçadas. Ou seja, não houve campanha, no sentido tradicional do termo.
DW: Esta eleição já é marcada pela circulação massiva de notícias falsas e rejeição ao jornalismo. Como é possível haver debate se alguns grupos estão fechados ao contraditório?
VS: A política nunca foi uma questão de argumentação. É um erro achar isso. Trata-se da mobilização de afetos, que, por sua vez, expressam adesões a formas de vidas distintas e conflituais. Você não argumenta contra afetos, mas os desconstitui. É um processo diferente. Afetos não são irracionais, no entanto. Eles têm uma dinâmica própria, e devem ser compreendidos na sua especificidade. Em certo sentido, numa situação tecnológica como a nossa, qualquer um pode produzir fake news.
Quando eram só setores consolidados da imprensa, existia maneiras de utilizar o processo judicial para contestar e saber quem fez. De uma forma ou de outra, um certo nível era preservado, mas, mesmo assim, longe de ser uma coisa simples. Há várias modalidades de construção de notícias, utilizadas constantemente por grupos midiáticos. Mas, agora, há um processo no qual essa função é invisível: você não sabe quem produziu.
A campanha do Bolsonaro parecia mambembe, amadora, feita às pressas. Mas começamos a perceber que não. Era extremamente organizada, pela qualidade do material que circulava. Os materiais que anularam a manifestação contra ele começaram a circular horas depois dos atos e eram extremamente bem produzidos. Eu me pergunto: quem foi o responsável? Em que produtora isso foi feito?
Não se sabe nem quem é o publicitário do Bolsonaro. Será, então, que não haveria estratégia de campanha, ou, na verdade, ela está sendo pensada em outro lugar onde a gente não consegue sequer enxergar? Nada bate nessa história. São organizadas redes no WhatsApp com mais de 8 mil pessoas, que se articulam entre si e proliferam um conjunto enorme de imagens extremamente bem editadas por profissionais.
DW: Os cientistas políticos costumam analisar a atual crise política partindo da eleição de 2014. Mas qual é a relação do momento atual com os protestos de 2013?
VS: Este é um evento fundamental da história brasileira. O fenômeno de 2013 foi a maior oportunidade perdida pela esquerda daqui. Era uma manifestação popular, que deixava muito claro o nível de descontentamento, frustração social, com uma perspectiva de enriquecimento que não ocorreu.
Poderia, sim, ter sido utilizada pela esquerda para dizer: estamos presos em uma camisa de força para conseguir fazer um segundo ciclo de políticas de crescimento e redistribuição de renda. A gente precisa assumir isso e lutar contra vários entraves políticos e coisas dessa natureza. Mas isso não foi feito. A esquerda ficou com medo do fato de que a manifestação jogou para a rua tanto aqueles dispostos a ir mais longe, quanto os setores reativos da sociedade.
Toda manifestação popular traz os sujeitos emergentes e os reativos. Se você não souber dar forma aos emergentes, os reativos vão tomar conta. Foi isso que aconteceu. Um clássico, literalmente. Marx mostrava isso desde 1848, quando tentou investigar como a revolução proletária se perdeu, transformando-se na ascensão de Napoleão Terceiro, pelo golpe do 18 Brumário.
Os protestos de 2013 mostraram imagens do povo contra o poder. Diante das imagens do povo que foi quebrar o Congresso Nacional e acabou tacando fogo no Palácio do Itamaraty, sempre tem aqueles que começam a gritar “ordem”.
Começaram a fazer isso, e aí veio 2014. Após a eleição, eu escrevi no jornal Folha de S. Paulo que a polarização não terminaria na semana seguinte e só iria aprofundar. É preciso estar preparado para isso. Não adianta imaginar que acabou a eleição e, agora, vai tudo voltar ao normal. Mas o governo achou que isso seria possível e tentou criar um modelo de conciliação. Juntou todos os setores conservadores dentro do governo, desmobilizou o seu lado, enquanto o outro lado foi para cima no vácuo, porque não havia mobilização em reação.
Em uma sociedade polarizada, a primeira coisa que você faz é fortalecer o seu polo, porque a única possibilidade de sobrevivência é uma espécie de balança, jogo de bola parada. Você vê que, se avançar demais, o outro avança também. Isso não foi feito.
A esquerda brasileira ficou embalsamando um cadáver, que é o lulismo. Deu o que tinha que dar, não dava mais. Fala-se que Lula teria 40% dos votos, e é verdade. Se estivesse em campanha, ele ia ganhar, isso é claro.
Por esse motivo, teve que ser preso. Caso contrário, virava presidente. Mas o fato é: isso aconteceria por uma lógica muito racional da população. O presente é catastrófico; o futuro, completamente incerto. Portanto, volto ao passado, que era melhor. De fato, era. Isso não tem a ver com o potencial de transformação que Lula representa, mas com uma situação de pavor social. Enquanto dinâmica de transformação, o lulismo já era um cadáver, mesmo que ganhasse.
Por João Soares
Fonte: cartacapital.com.br