Ditadura e Volkswagen promoveram ‘o maior incêndio da história’ nos anos 1970
Montadora ganhou terras e isenção de impostos para desmatar a Amazônia, promoveu as primeiras queimadas detectadas por satélite e também fez uso de trabalho escravo; desastres deram início aos debates sobre o aquecimento global
Foi um mês de dezembro bastante quente no Brasil em 1975. Um satélite ainda muito rudimentar da Nasa, a Agência Espacial Norte-Americana, havia detectado um incêndio de grandes proporções na área sudeste da Amazônia, uma área especialmente sensível para a ditadura militar brasileira. A mata estava queimando na fazenda de gado da Volkswagen, a Fazenda do Vale Cristalino, também chamada de Companhia Vale do Rio Cristalino. O assunto vinha sendo tratado com cautela pelos militares desde que a empresa alemã havia adquirido, com os empréstimos e benesses da Ditadura, uma área imensa no Araguaia para montar uma gigantesca fazenda de gado. Seria uma fazenda modelo, segundo as diversas matérias jornalísticas e os anúncios do período.
Desde 1974, a Amazônia queimava – e os governos alemão e brasileiro sabiam. Rumores a respeito das fotos de satélite se espalharam pela comunidade científica mundial. Uma enorme mobilização de cientistas e pesquisadores do Brasil e fora passou a pressionar o governo para saber as razões de incêndio de tão grandes proporções estava acontecendo na Amazônia, nas terras da fazenda da Volks. Desde julho de 1975, os cientistas brasileiros estavam alertas. Naquela ocasião, havia acontecido o 27º Congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em que se questionou o governo militar a respeito das práticas de desmatamento realizadas pela Volks na sua fazenda. Paulo Nogueira Neto chefiava a Secretaria de Meio Ambiente (SEMA) do governo do general Ernesto Geisel e teve de responder às perguntas de um grupo aguerrido de cientistas norte-americanos, alemães e brasileiros a respeito dos contínuos incêndios da Fazenda do Vale do Rio de Cristalino. A Volks era acusada de montar o projeto mais “antiecológico do mundo” e isso não era segredo para ninguém.
A história da fazenda frequentava os jornais e a televisão fazia alguns anos. Em 1971, anúncios publicados na grande imprensa, pagos pelo governo via Sudam, Ministério do Interior e Banco da Amazônia, exibiam um robusto touro com a seguinte mensagem: “Volkswagen produzido na Amazônia”. A alusão, claro, era aos carros produzidos nas fábricas do ABC paulista.
O texto do anúncio era, no entanto, ainda mais revelador. “Ao seu lado [da Volskwagen], na Amazônia, encontram-se alguns dos mais poderosos grupos deste país: Mappin, Scarpa, Gasparian, Alcântara Machado, Swift, Lunardelli, Camargo Corrêa, Villares, Finasa, Germaine Bouchard, Levy, Junqueira Vilela, Meinberg, Avelar Assumpção, Ometto.” (A Ometto, em caso relatado no livro Cativeiro sem Fim – o sequestro de crianças e adolescentes pelo regime militar, promoveu nos fins dos anos 1960 um deslocamento de um grupo indígena inteiro, resultando em epidemias que mataram centenas de pessoas; no processo, cinco crianças foram sequestradas e nunca mais vistas). “Nem todos vão criar gado, embora os maiores pastos do mundo estejam na área da Sudam”, prossegue o anúncio, um convite para atrair mais investidores para a região, que traz outros trechos que mostram todo o empenho do governo em beneficiar essas empresas: “Para garantir o lucro, o Banco da Amazônia dá toda cobertura financeira. E o Governo Federal e os Governos Estaduais da região fazem tudo o que podem. Nada de pagar Imposto de Renda durante 10 anos.” As promessas não param aí: “Em algumas regiões você não paga nem Impostos Estaduais, nem Impostos Municipais, e até o terreno você pode receber de graça”; “Se for preciso importar equipamento, você não paga taxas nem Imposto de Importação”; “vá para a Amazônia. Você sabe: os maiores são os que chegam primeiro.”
Alguns anos depois, no dia 20 de setembro de 1974, foi finalmente aprovado pelo governo brasileiro o plano da Companhia Vale do Rio Cristalino, da Volkswagen. O projeto englobava a criação de bovinos numa extensa área situada no Araguaia, que alcançava diversos municípios no sul do estado do Pará, como Conceição do Araguaia e Santana do Araguaia.
Para os militares, a área seria um “grande vazio” demográfico e econômico (desconsiderando, claro, os grupos indígenas e camponeses da região). Grupos de esquerda, como a ALN (Ação Libertadora Nacional) e o PCdoB (Partido Comunista do Brasil), haviam montado desde o final dos anos 1960 focos guerrilheiros em terras da região. O foco da ALN não vingou, mas o PCdoB, ainda em 1974, continuava a ser combatido. Era preciso, portanto, ocupar o território e torná-lo, aos olhos da ditadura, econômica e politicamente controlado.
O presidente da Volkswagen na época, Wolfgang Sauer, deu seu aval para o que era considerado um excelente negócio para a empresa alemã. A companhia não apenas “ajudaria” o país a crescer – era a época em que o governo veiculava em propagandas a ideia de “Brasil grande” – como poderia ganhar um bom dinheiro investindo em um novo negócio promissor.
Na época, essas ideias foram traduzidas pelo diretor do empreendimento, Friedrich Brügger: “É a única opção possível. O país dispõe de espaços e de condições naturais únicas. Basta jogar um pedaço de pau para que ele cresça imediatamente.”1 A frase refletia o que pensava tanto o governo como os empresários. O resultado foi a compra de 140.000 hectares de terra.
Na realidade, o negócio se tornou realmente atrativo para a Volkswagen por causa dos incentivos fiscais do governo. O sociólogo José de Souza Martins identificou esse período como sendo a época em que grandes grupos econômicos ou conglomerados financeiros instauraram o latifúndio como o conhecemos hoje, em forma de agronegócio. Grandes extensões de terras, sob o controle do poucas empresas.
Assim, para conseguir esse resultado, o governo federal fez uma série de manobras fiscais, dando 50% de desconto no imposto de renda aos que investissem na região. “A condição era a de que esse dinheiro fosse depositado no Banco da Amazônia, um banco federal, e, após aprovação de um projeto de investimento pelas autoridades governamentais, fosse constituir 75% do capital de uma nova empresa, agropecuária ou industrial, na região amazônica. Tratava-se de uma doação e não de um empréstimo.”2 No slogan do anúncio acima: “Metade do Brasil quer metade do seu Imposto de Renda”.
O governo, via Banco da Amazônia, financiaria qualquer risco que qualquer grande empresa tivesse ao abrir um grande negócio no Araguaia. Naturalmente, o valor disponibilizado pela Sudam estaria vinculado à quantidade de terra utilizada e deveria ser aprovado somente se a terra estivesse nua, ou seja, totalmente desmatada. O banco e o governo diziam, sem pudor, que o desmatamento estava valorizando as terras.
Recorde de destruição
Foi dessa maneira que começou um dos maiores desflorestamentos feitos por uma só empresa no mundo. O empreendimento era para ser considerado modelo de gestão de negócios no campo, de padrão alemão. Casas arrumadas para os funcionários, escolas, campos de recreação, igreja, médicos, dentistas, supermercados, piscinas e outras facilidades estavam incluídas no plano de construção da Fazenda do Vale Cristalino.
A ideia da Volks incluía não apenas a criação extensiva de gado, mas também a montagem um frigorífico para exportar carne para Japão, Estados Unidos e Europa. Contudo, na época, o Araguaia não possuía luz elétrica nem estava nos planos do governo levar a luz para lá. Dessa forma, a ideia do frigorífico foi rapidamente descartada por falta de infraestrutura. O gado seria “cientificamente” monitorado por computadores e analisado por cientistas alemães. O solo verificado constantemente para se detectar a falta de sal e outros minerais. Seria, no limite, a fazenda-modelo para todas as fazendas, o empreendimento do futuro, que poderia, era a promessa, acabar com a fome do país, quiçá do mundo.3 Em 1974, Chico Buarque escreve um livro, chamado Fazenda Modelo, publicado pela Civilização Brasileira, uma distopia que denunciava a violência de um modelo ultracapitalista de exploração pecuária.
As propagadas, veiculadas inclusive na televisão, davam uma noção da grandiosidade do projeto – foram páginas e páginas de matérias e anúncios chamando o povo a admirar a “conquista da selva”, feita conjuntamente pelo governo do general Geisel e a montadora de carros alemã Volkswagen. O desmatamento era visto como sinônimo de progresso, de inovação, de tecnologia. Assim, em 1974, a Volkswagen veio a público para dizer que “orgulhosamente” havia queimado 4.000 hectares de floresta amazônica em poucos meses, “um recorde nunca igualado até agora por nenhum outro projeto similar implantado na região”4.
Orgulho do desastre
O desastre ambiental tão propagandeado pela empresa em anúncios e entrevistas foi detectado por satélites da Nasa. A imprensa e os cientistas, agrupados em torno do então diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Warwick Kerr, soltaram várias notícias alarmantes, inclusive a de que um incêndio dessas proporções poderia derreter calotas polares, inundar Manaus, causar uma mudança climática mundial.
O professor da Universidade de Zurique Antoine Acker, autor do livro Volkswagen in the Amazon: The Tragedy of Global Development in Modern Brazil (Cambridge University Press, 2017), analisou a situação da época: “Esse discurso [das mudanças ambientais] era particularmente significativo na medida em que expressava a sobreposição de escalas que caracterizava o problema do desmatamento tropical. Kerr – ao lado de outros membros da SBPC – acusou especificamente as multinacionais de serem corresponsáveis por um fenômeno regional de degradação ambiental na Amazônia. Ele alertou que essa degradação regional poderia, por sua vez, ter consequências climáticas globais, e desse risco de desregulação global […].”
O resultado, diz Acker, foi o estabelecimento de um “senso de conexões globais” entre os cientistas brasileiros e estrangeiros que tem se mantido determinante no debate sobre a Amazônia no mundo desde então. A ideia foi mostrar que todo o globo está conectado e que aquilo que ocorre num lugar afeta todo o planeta.
Na época, a boa vontade da população com o projeto da Volkswagen mudou rapidamente. A empresa passou a ser acusada de um crime ambiental de proporções enormes, um verdadeiro crime contra a humanidade. O incêndio em larga escala passa a ser um indicador do modo como as empresas estrangeiras exploravam e destruíam as riquezas do país. E, mesmo sob o terror mantido pelo governo Ernesto Geisel, quando a prática de desaparecimento de opositores atinge seu auge, os parlamentares do MDB encabeçaram uma campanha contra as fazendas doadas a empresas estrangeiras e, em espacial, contra a Volkswagen.
Reprodução
Anúncios pagos pelo governo exibiam um robusto touro com a seguinte mensagem: “Volkswagen produzido na Amazônia”
Na fábrica, a tortura
À boca miúda, entre os defensores de direitos humanos e membros da resistência à os grupos contra a ditadura, sabia-se que a Volkswagen torturava trabalhadores dentro de suas instalações em São Bernardo do Campo, como ocorreu com o metalúrgico Lucio Bellantani em 1972. A fábrica também havia empregado um ex-comandante dos campos de extermínio de Treblinka e Sobibór na Polônia, Franz Paul Stangl, entre 1959 e 1967. Stangl foi o responsável por montar o sistema de monitoramento e vigilância dos trabalhadores na fábrica de São Bernardo, segundo a Comissão Nacional da Verdade. Qualquer suspeito de alguma atividade política ou sindical que incomodasse a empresa levava a Volks a acionar o Departamento de Ordem Política (DOPS), que possuía uma delegacia só para isso na época, em Santo André. Com o desmatamento na Amazônia, todos esses elementos ajudaram a destruir a reputação da empresa na época, que teve que responder a inquéritos e questionamentos tanto na Alemanha como no Brasil.
Em 10 de agosto de 1976, o deputado federal Nino Ribeira, mesmo sendo do partido governista Arena (Aliança Renovadora Nacional), numa sessão do Congresso Nacional, questionou o presidente da Volks sobre os crimes ambientais cometidos no Araguaia.
“Afinal de contas, senhor Wolfgang Sauer, com que propósito o senhor veio ao Brasil: produzir automóveis ou colocar fogo na floresta?”5 Paulo Brossard, do MDB, discursou poucos meses depois, exigindo que as autoridades ficassem de sobreaviso em relação às empresas estrangeiras. “Parece-me … que um crime contra a nacionalidade está sendo cometido [pela VW], e nós não podemos assistir indiferentes a tais coisas acontecerem, tais atos serem praticados, com incontáveis danos à comunidade nacional.”6 Numa audiência no Senado em junho de 1976, um dos maiores arquitetos-paisagistas do mundo, Roberto Burle Marx, afirmou que a Volkswagen havia destruído uma área de floresta “do tamanho do Líbano” e “produzido, na Amazônia, o maior incêndio da história de todo o planeta”.
Trabalho escravo
Mas não foram apenas crimes ambientais cometidos pela Volkswagen na sua Fazenda do Vale do Rio Cristalino. A empresa foi acusada de usar trabalho escravo na fazenda – como faziam, aliás muitas outras fazendas da região. Na época, as graves violações das leis trabalhistas que ocorreram sob a responsabilidade dos grupos estrangeiros não provocaram comoção porque o trabalho forçado era considerado uma prática esperada na Amazônia.
Ainda assim, foi montada uma comissão de deputados estaduais de São Paulo para visitar a fazenda entre os dias 5, 6 e 7 de julho de 1983. A comitiva era encabeçada pelo deputado do Partido dos Trabalhadores (PT) Expedito Soares Batista, que fez um relatório sobre o que viu lá. Ele conta que, ao chegar à região num avião particular disponibilizado pela própria Volks, a comitiva pegou um caminhão para a sede da fazenda. No caminho, os deputados, de diferentes tendências políticas, cruzaram com uma caminhonete com alguns trabalhadores amarrados na caçamba. Questionados sobre a prática, os capatazes afirmaram que, se os trabalhadores não fossem amarrados, não trabalhariam direito.
A aventura amazônica da Volkswagen é um caso paradigmático da atuação das empresas e da ditadura militar brasileira. Aliar negócios privados com financiamentos públicos, destruição do meio ambiente com tortura dentro das fábricas, trabalho escravo com uma suposta modernização. Tudo embalado dentro de uma maciça campanha publicitária que exaltava o Brasil grande, o “Ame-o ou deixe-o”.
Tanto o governo do general Geisel como a Volkswagen saíram seriamente arranhados do episódio. Mas isso não significou menos repressão: a partir desses acontecimentos, os serviços de segurança da ditadura começaram a fichar os “ecologistas” e “ambientalistas”, a partir de então considerados “inimigos” potencialmente tão perigosos como os comunistas.
Em poucos anos, o grande edifício da ditadura começaria a ruir. Mas o projeto de destruição, como podemos perceber, permanece.
(*) Joana Monteleone é historiadora; Haroldo Ceravolo Sereza é jornalista. São autores, junto com Vitor Sion, Felipe Amorim e Rodolfo Machado, de À espera da verdade: Empresários, Juristas e Elite Transnacional, Histórias de Civis que Fizeram a Ditadura Militar (Alameda Casa Editorial, 2015).
Fonte: operamundi.uol.com.br
[1] Um dos melhores artigos sobre o tema foi escrito por Benjamin Buclet em seu artigo “Entre tecnologia e escravidão: a aventura da Volkswagen na Amazônia”, publicado pela Revista do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC – Rio: “O Social em Questão” nº 13, no primeiro semestre de 2005. A fala de Friedrich Brügger se encontra neste artigo.
[2] Martins, José de Souza. “A reprodução do capital na frente pioneira e o renascimento da escravidão no Brasil”, Tempo Social. São Paulo: USP, 6 (1-2): 1-25, 1994.
[3] Outro artigo fundamental sobre o assunto é “O maior incêndio do planeta”, de Antoine Acker. Publicado na Revista Brasileira de História, v. 34, n. 68, p. 13 -33, 2014.
[4] “O maior incêndio do planeta”, de Antoine Acker. Publicado na Revista Brasileira de História, v. 34, n. 68, p. 13 -33, 2014.
[5] Antoine Acker. Publicado na Revista Brasileira de História, v. 34, n. 68, p. 13-33, 2014.
[6] Diário do Congresso Nacional, 19 set. 1978. Brasília: Câmara dos Deputados, 1978, p.8146-8147.