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Debora Diniz: “Todas as mulheres fazem aborto, mas só em algumas a polícia bota a mão”

Referência nos estudos sobre o tema no Brasil, ela está sendo perseguida e ameaçada. Em entrevista ela explica porque a criminalização do aborto é inconstitucional

Às vésperas das audiências públicas convocadas pelo Supremo Tribunal Federal para discutir a descriminalização do aborto, que acontecem nos próximos dias 03 e 06 de agosto, uma das figuras mais importantes sobre o tema na América Latina está sendo perseguida e ameaçada a ponto de ter sido incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos. Trata-se da antropóloga e professora da UnB Debora Diniz, que em 2016 figurou entre os cem pensadores globais de destaque na revista Foreign Policy e um ano antes foi homenageada em um evento para professores da Unesco. Ela também ganhou o prêmio Jabuti por seu livro “Zika: do sertão nordestino à ameaça global” e é pesquisadora da organização Anis Instituto de Bioética, consultora do Psol na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, que questiona a constitucionalidade da criminalização do aborto, examinada pelo STF.

Em entrevista exclusiva à Pública, Debora Diniz conta que decidiu deixar a cidade onde mora por um tempo para não precisar se deslocar permanentemente com escolta e diz que a polícia está avançando nas investigações. Mas prefere focar a conversa no que para ela é o mais importante: trazer à luz uma discussão qualificada e baseada em evidências sobre a descriminalização do aborto no país, para que mulheres deixem de morrer ou serem presas por um procedimento realizado no Brasil por uma a cada 5 mulheres até 40 anos, como aponta a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) realizada pela Anis em 2016. Ainda segundo o trabalho, cerca de 48% das mulheres que abortaram completaram o ensino fundamental, e 26% tinham ensino superior. Do total, 67% já tinha filhos, 56% eram católicas e 25% protestantes ou evangélicas.

A ADPF 442, que chegou ao STF em março de 2017, pede a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até 12 semanas. “O código penal de 1940 manda prender mulheres que fizeram o aborto. A Constituição é de 1988 e portanto posterior a 1940. Uma leitura do Código Penal pela Constituição diz que eu não posso prender mulheres se é uma necessidade de saúde, se é uma questão de cidadania, se o aborto é parte da dignidade da vida das mulheres ao tomar essa decisão. Então uma leitura da Constituição sobre o Código Penal diz que ele é inconstitucional” explica Debora na entrevista. Para julgar a ADPF a Ministra Relatora Rosa Weber convocou essas audiências públicas. Especialistas, instituições e organizações científicas, jurídicas e da sociedade civil vão apresentar suas posições e a partir disso o STF fará o julgamento, ainda sem prazo definido. “Os melhores dados e a melhor ciência disponível sobre o tema vão ser apresentados ao Supremo. Então essa é uma possibilidade de giro do debate das multidões, do ódio, das redes sociais, para a qualificação do debate a partir do que sabemos de aborto. Esse é um momento de fazer algo que no campo jurídico e no campo científico se conhece muito, que é um argumento baseado em evidências”. Leia a entrevista:

Pergunta. A imprensa tem noticiado que você saiu de Brasília e que fará parte do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do governo federal, por estar sofrendo ameaças inclusive pessoalmente. Pode contar o que está acontecendo?

Resposta. Sim, eu estou no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos, estou fora de Brasília viajando a trabalho e também por uma escolha pessoal, para evitar me deslocar permanentemente com escolta. A polícia está investigando e não houve obrigação de sair de Brasília nesse processo. São ameaças que começaram primeiro por redes sociais, no Facebook da Anis por inbox, no meu Whatsapp, até que chegou em uma situação em que eu fui falar em um evento e alguns homens estavam na porta me esperando. Eles tinham um perfil diferente dos que estavam no evento e a coordenação sugeriu que eu saísse pelos fundos para não haver nenhum encontro. As ameaças começaram de uma maneira mais forte depois da convocação das audiências públicas e em particular depois do anúncio dos participantes, e foram crescendo. A denúncia tem mais de dois meses e meio. Ela vazou para a imprensa depois, mas eu tinha decidido não falar nada até a polícia avançar na investigação.

P. Seu trabalho é referência em bioética, direitos reprodutivos das mulheres e direitos humanos. Essas ameaças são algo novo ou aumentaram nos últimos tempos?

R. No tempo da discussão sobre a legalização do aborto em caso de fetos com anencefalia elas existiam muito fortemente, em particular no trabalho em parceria com um promotor de justiça do DF chamado Diaulas Ribeiro. Nós fizemos um livro juntos e, nessa ocasião, ele solicitou escolta policial para o lançamento do livro. Eu passei alguns constrangimentos, inclusive dando aula, um sujeito entrou, eu fiz uma queixa crime, foi uma época em que houve uma tensão inclusive de proximidade física. Depois isso se acalmou, passaram-se alguns anos sem maiores perturbações e aí, no ano passado, com a apresentação do caso da Rebeca Mendes no Supremo, elas voltaram com alguma força. Um sujeito que se diz do jornalismo investigativo fez um vídeo bastante intimidatório e isso causou uma repercussão. Eu resolvi não me movimentar muito sobre esse vídeo e eles voltaram com mais força agora em abril e maio, inclusive fazendo páginas coletivas que tinham centenas de comentários.

P. Temos visto discursos de ódio ganharem muita força recentemente. Você acha que o que está vivendo tem a ver com esse momento ou com a aproximação das audiências no STF?

R. Eu acho que isso tem a ver com duas grandes coisas. O tema do aborto é muito fácil para momentos de grande crise política. O Brasil vive uma crise política permanente nos últimos anos, com uma crise de representatividade política inclusive – nós não sabemos muito bem quem são os partidos, o que eles propõem, as propostas de governo, como eles fazem coalizões, inclusive com religiões. E nesse contexto de fragilidade política, temas com forte apelo emocional e que são capazes de movimentar multidões como “sim” ou “não”, “contra” ou “a favor”, como é o caso da descriminalização do aborto, da maconha, do uso de porte de armas, movimentam rapidamente multidões e dão uma falsa sensação de participação política. Então parte destes tempos sombrios surgem por causa dessa instabilidade, em que grandes questões democráticas não são discutidas como parte de um processo político. Nós estamos no Rio de Janeiro com uma intervenção militar desde fevereiro e isso não é uma pauta política permanente de reflexão séria no país. Tudo isso faz com que temas fáceis à mobilização, e uma não reflexão sobre quais são as questões postas, movimentem multidões. Esse é um pano de fundo importante. E o segundo ponto é a própria arena das mídias sociais em que a gente ainda precisa de uma cultura política e de comunicação para ocupar esses espaços. Qualquer coisa vale, de uso de identidades falsas a agressões. O aborto é um tema que provoca paixões, que exige um arsenal de informações e de cautela para o debate, caso contrário ele cai imediatamente na agressão. Então, essa dificuldade já faz parte da história do próprio tema e, quando ainda se colocam esse dois condicionantes nossos, isso se torna um tema de risco.

P. Falando sobre essas audiências do STF. A Anis assina, juntamente com o Psol, a ação que será discutida. Me parece que há uma confusão sobre o que será julgado e de que forma. Pode explicar o que vai acontecer nos próximos dias?

R. O código penal de 1940 manda prender mulheres que fizeram o aborto. A Constituição é de 1988 e portanto posterior a 1940. Uma leitura do Código Penal pela Constituição diz que eu não posso prender mulheres se é uma necessidade de saúde, se é uma questão de cidadania, se o aborto é parte da dignidade da vida das mulheres ao tomar essa decisão. Então uma leitura da Constituição sobre o Código Penal diz que ele é inconstitucional. Todas as leis anteriores à Constituição têm que ser revistas. Só que ninguém nunca provocou o Supremo a revisar o Código Penal, à luz da Constituição, sobre o aborto. E a Suprema Corte é um espaço legítimo para essa revisão do código penal, muito anterior à Constituição. Esse pedido foi feito pela Anis e pelo Psol em março de 2017. A ministra relatora Rosa Weber convocou audiências públicas – que ainda são momentos raros dentro do Supremo. As primeiras convocadas na história foram as da anencefalia e as primeiras realizadas foram as de célula tronco. Nessa ação, o primeiro ato da ministra, um ano depois da apresentação da ação, foi dizer “vou convocar audiências públicas, eu quero ouvir especialistas, comunidade científica, comunidades de fé e a sociedade civil para ouvir o que elas têm a dizer sobre aborto”, sobre o pedido feito na ação, que é o de não prender as mulheres. Esse é um momento muito importante, tanto politicamente quanto de qualificação do debate público, porque é um momento em que o Supremo se curva à sociedade dizendo “eu preciso ouvi-la antes da tomada de decisão”. Estes momentos, dias 3 [amanhã] e dia 6, são os das audiências públicas. E há uma novidade: Pela primeira vez a ministra disse que o que for apresentado nas audiências públicas – e por isso ela pede tanto tempo antes das apresentações – será anexado ao processo, fará parte dos documentos a serem consultados pelos outros ministros. O que pode acontecer a partir daí? Ela pode a qualquer momento convocar o julgamento. Não há um calendário. Vai ser no tempo da corte. No caso da anencefalia durou 8 anos. As audiências públicas são o momento de qualificação do debate, não é o julgamento ainda. Serão 40 expositores entre cientistas, especialistas, comunidade jurídica, comunidades de fé, a sociedade civil. Os melhores dados e a melhor ciência disponível sobre o tema vão ser apresentados ao Supremo. Então essa é uma possibilidade de giro do debate, que antes nós falávamos, das multidões, do ódio, das redes sociais, para a qualificação do debate a partir do que sabemos de aborto. Esse é um momento de fazer algo que no campo jurídico e no campo científico se conhece muito, que é um argumento baseado em evidências seguras para aquilo que se sustenta sobre o aborto. Há risco de morte? Sim ou não, quais são os dados apresentados? Quem é a mulher que aborta? Qual é o perfil? Aborto tem risco para a saúde mental? Quais são os dados apresentados? Ou seja, as perguntas que são feitas para decidir o “sim” ou “não” à criminalização do aborto precisam ser respondidas na audiência. E por que é importante agora? Eu daria duas respostas. Uma nacional porque nós temos as eleições daqui a dois meses então esse é um momento em que se soubermos bem usar o que vai ser apresentado, podemos usar para qualificar o debate público. E a ministra foi muito sensível a esse tema porque poderia parecer quase que um momento inadequado, ela sendo inclusive presidente do Superior Tribunal Eleitoral. Mas eu acredito que é o momento de respeito à democracia. E há uma segunda razão, que é de uma geopolítica regional. A Argentina vota a decisão no Senado no dia 8 próximo. Então, como uma alegoria, eu poderia dizer que há uma onda verde na região, que é um momento na história. Na Irlanda recentemente também, no Chile, na Bolívia que descriminalizaram em parte a interrupção da gravidez, elas no Chile morriam, não podiam fazer aborto nem com risco de morte. Há um momento histórico do qual o Brasil faz parte.

P. O que querem as mulheres que pedem a descriminalização do aborto?

R. A descriminalização é a retirada desse dispositivo, dessa coisa do código penal que diz que se uma mulher fizer aborto ela vai presa. Presa! Nós nunca podemos esquecer disso! É uma a cada 5 mulheres aos 40 anos [que aborta]! Pelo menos meio milhão de mulheres a cada ano. Uma em cada 5 mulheres com até 40 anos que você conhece, eu conheço. Uma delas ao menos teria passado pela prisão. Essa é uma mulher comum, ela tem filhos, ela vai à igreja, vai ao templo, trabalha, ela não tem o perfil de uma “mulher fora da lei”, de uma mulher criminosa. É uma mulher comum que se vê diante de uma necessidade de saúde, uma necessidade de vida, e ela tem que ir à clandestinidade pra fazer um aborto, seja para comprar medicamentos, buscar uma clinica ou, se ela tem mais dinheiro, pegar um avião para um país onde o aborto é legalizado. Por que a descriminalização é tão importante? Quando você retira o crime de uma prática você pode falar dela abertamente. As instituições do Estado podem desenhar políticas para prevenir, para proteger e para cuidar. Como se previne o aborto? Há estudos sistemáticos que mostram que uma mulher quando faz o aborto, alguma coisa está errada em sua vida. Seja no uso dos métodos, ou ela teve efeitos colaterais ou ela não soube usar, ou porque ela é muito jovem e sofre violência sexual dentro da própria casa, porque sofre violência do parceiro, não tem dinheiro para acessar os métodos… Há várias razões para os métodos falharem. Os companheiros não permitem que elas usem, elas não conseguem negociar o uso da camisinha… Então quando o aborto é crime essa mulher entra na situação de saúde e não fala a verdade, ela tem medo de ser denunciada. Esse médico, essa enfermeira perdem a oportunidade de saber o que esta acontecendo de errado e prevenir um segundo aborto. Se você vir por exemplo a Colômbia, que descriminaliza o aborto por uma decisão da corte há mais de 10 anos, uma mulher que faz aborto por saúde mental por exemplo, ela já sai do sistema de saúde com método de planejamento familiar, com método contraceptivo adequado à sua saúde e à sua vida. A descriminalização permite inclusive diminuir a taxa de abortos, que é o que tanto querem aqueles que querem prender as mulheres. O Brasil está na região que mais pune e que mais faz aborto do mundo. Quanto mais se pune mais aumenta a perseguição e a dificuldade de acesso à informação, e as mulheres fazem mais abortos porque algo está errado.

P. O que a Pesquisa Nacional do Aborto realizada em 2016 concluiu? Quem são as mulheres que realizam aborto no país?

R. É a mulher comum. Não é aquela mulher que se imagina como promíscua, como adolescente irresponsável ou como profissional do sexo. Ela é qualquer uma de nós. É claro que as mulheres mais empobrecidas, vulneráveis, dependentes do SUS para acesso a proteção de saúde são as mais vulneráveis aos efeitos da criminalização. Todas as mulheres estão sob a ameaça da criminalização, da prisão, mas só algumas correm o risco verdadeiro de serem perseguidas, punidas ou presas, que são aquelas mulheres mais dependentes do estado. Mulheres pretas e pardas, indígenas, da periferia, mulheres com menor nível de escolaridade e mulheres mais pobres. São elas que tem que se arriscar a não conhecer e não saber sobre o medicamento que fazem uso, são elas sem acesso à informação digital sobre a melhor forma de utilizar um medicamento, são elas que procuram o SUS e que são denunciadas à policia. As mulheres com mais acesso à informação, as mulheres mais urbanas, as mulheres com maior nível de escolaridade recorrem a métodos um pouco mais seguros apesar da clandestinidade. Nós estamos falando da desigualdade brasileira no perfil da mulher, que faz aborto e corre risco de ser pega pelo código penal. Todas as mulheres – as brancas, as negras, as de classe media, as mais pobres, as das elites, dos melhores bairros, das periferias – fazem aborto. Mas só aquelas mesmas que o Estado, que a polícia bota a mão, são aquelas em quem a polícia vai botar a mão quando fazem aborto. Aqui a seletividade do sistema, do racismo e da desigualdade de classe brasileira é tão perversa que a mesma lei só pega algumas, só põe algumas em maior risco, só algumas morrem como foi o caso recente da mulher do interior do Rio de Janeiro.

P. Na Argentina a descriminalização do aborto já passou na Câmara, depende agora da aprovação do Senado, e milhares de pessoas têm tomado as ruas pedindo que seja lei. Na sociedade brasileira, no entanto, é quase um tabu. Por que você acha que isso acontece?

R. A Argentina também é um país muito conservador em que o aborto é um tabu. Nós estamos falando de diferentes mobilizações da sociedade civil e pelo momento político do país. Nós somos muito parecidos, Brasil e Argentina nesse tema, e a Argentina tem um papa argentino, teria todas as condições políticas de não ter essa mobilização. Então eu não diria que é o conservadorismo da sociedade brasileira ou da sociedade argentina. Há uma onda conservadora vindo em toda a região, no entanto, a Argentina teve um movimento como o Ni Una Menos que mobilizou o tema da violência de gênero e sobre o que representavam as estruturas do Estado contra as mulheres. E por não ter vivido uma crise política, que é imobilizadora como a do Brasil recente, houve essa enorme mobilização das mulheres, dos velhos, dos homens, das crianças pelas ruas, especialmente de Buenos Aires.

P. Com as eleições se aproximando, você acha que os candidatos irão discutir esse assunto?

R. Todas as eleições mostram, seja na reta final ou quando há alguma grande disputa, esse tema vem. E ele não vem na expectativa de um debate razoável e fundamentado em dados, ele vem intimidatório e coercitivo sobre aqueles que lançam posições que não sejam conservadoras. A minha expectativa é que as audiências no Supremo permitam uma qualificação do debate nas eleições, mas eu acredito que isso não virá como uma política de governo dos candidatos porque é sempre um tema intimidatório, especialmente nas comunidades religiosas, que têm muita força no país.

Fonte: El País

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