Artigo – Os sindicatos no combate à pandemia
Uma pandemia se abateu sobre o planeta. O novo coronavírus se espalha com velocidade por todos os países, ameaçando a vida de populações inteiras. Embora tenha letalidade maior entre indivíduos com mais de sessenta anos de vida, já ceifou vidas entre todas as faixas etárias.
Se é verdadeiro que o vírus não discrimina suas vítimas no processo de contaminação, se espraiando como um germe “democrático”, está se constatando que o tratamento dos governos no enfrentamento da pandemia, além de bastante desigual entre cada um dos países, não vai se efetivar de uma forma igualitária no seio da população.
Como vem sendo feito esse combate ao coronavírus no Brasil?
No limite da irresponsabilidade
No país campeão das desigualdades, as medidas até aqui tomadas só aprofundam esse quadro perverso.
Na esfera federal, o presidente da República atua como se fosse um inimputável. Suspeito de ser portador do vírus – por ter integrado uma comitiva em viagem aos Estados Unidos da América, da qual vinte e duas pessoas testaram positivo para o novo coronavírus -, o mandatário participou de protestos a favor da instituição de uma ditadura, apertando a mão de centenas de populares, se comportando, portanto, como um potencial propagador da pandemia.
Somada a essa conduta irresponsável, Bolsonaro vem adotando um discurso público de franco negamento dos riscos que a pandemia implica, desdenhando da gravidade da situação: “está superdimensionado o poder desse vírus”, “tem ali é muito mais fantasia”, “outras gripes mataram mais que essa”, “está havendo uma histeria”, “é uma gripezinha”. Essas são algumas das afirmações do presidente, um notório produtor de absurdos.
Seu ministro da Economia, o ultraliberal Paulo Guedes, manifesta sua preocupação com o “rápido contágio da economia”, prosseguindo com o projeto de desmantelamento da estrutura de proteção estatal, mesmo após cortes brutais do orçamento destinado à saúde, por meio da EC-95 (a do teto dos gastos, conhecida desde sua proposição como PEC da morte).
As medidas anunciadas na esfera de prevenção são tímidas, o que faz com que os governadores dos estados da federação se antecipem com outras iniciativas na sua esfera de atuação, ampliando a confusão entre as pessoas.
No plano do trabalho, a política ultraliberal aponta para a redução dos salários em meio à crise, e os governadores nos estados tratam os setores do comércio, de serviços e da indústria de forma diversa. Cabe aos sindicatos agir com firmeza nesse momento difícil em que os interesses de classe estão claramente contrapostos.
Em meio a pandemia Bolsonaro ainda teve a coragem de emitir uma MP927 cujo artigo 18 permitia suspensão do salário dos trabalhadores por quatro meses, Assim, a partir de segunda-feira (23), os patrões poderiam tudo, os sindicatos nada e os trabalhadores se tornam, de fato, em lei, semi-escravisados! No início da tarde revogou o tal artigo 18 da MP,mas mostrou suas intenções. Bolsonaro, de maneira sórdida, se aproveita oportunisticamente da ameaça de morte coletiva imposta pela pandemia pra aplicar todas as suas pretensões ultraliberais na destruição de qualquer proteção, individual ou coletiva, nas relações de trabalho no Brasil. Repugnante!
Uma realidade escandalosa
A renda no Brasil é dividida em proporções escandalosas. A parcela de 1% dos mais ricos concentra mais de 23% de toda a renda nacional. No outro extremo social, cerca de 14 milhões de pessoas vivem em estado de miséria.
A expressão dessas disparidades é sempre pública — e revoltante. Os jornais publicaram a corrida de setores da alta burguesia pela estocagem de alimentos em supermercados de “alto padrão”. Gente do mundo “socialite” e endinheirados surgiram utilizando máscaras e luvas de grife, besuntados em álcool gel com cheiro de pera.
Em meio a esse caos com ares de distopia, está ocorrendo a reação, de uma forma enfática, de pequenos setores da classe média urbana, pequenos comerciantes e até de parcela dos microempresários ao show de horrores do presidente da República e seus asseclas. São protestos diários com panelaços em defesa da vida que, em mais de um sentido, fortalecem a luta dos trabalhadores pobres e dos mais vulneráveis frente a mais uma guerra a ser enfrentada.
Nas periferias, a mídia vem registrando a realidade cruel: famílias inteiras dividindo uns poucos metros quadrados, em habitações sem nenhuma possibilidade de garantir um mínimo isolamento, em caso de contaminação de um de seus integrantes. Enquanto isso, nas fábricas que compõem a indústria, segue imperando a ganância e o autoritarismo jamais superados nesses locais de trabalho.
A necessidade de proteção social
Vai se formando um consenso sobre a necessidade de resguardo social para enfrentar a disseminação da pandemia e evitar o colapso do sistema de saúde.
Como alertado acima, apesar desse consenso científico, os governos vêm adotando políticas diversas em seus países. Ainda que não tenham atingido o grau de irresponsabilidade de Bolsonaro, outros dirigentes vêm se mostrando incapazes de dar respostas à altura do desafio.
Nos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump ensaiou uma postura desdenhosa perante a disseminação do vírus, tentando “carimbar o passaporte” chinês no COVID-2.
No Reino Unido, o primeiro-ministro Boris Johnson implementava a política da imunização de rebanho, sem combate à disseminação da pandemia e apostando na criação de anticorpos pela população, após uma contaminação em massa. Ambos recuaram diante das evidências e do início da triste contabilização das mortes pelo mundo.
A convergência científica acerca da necessidade de isolamento dos indivíduos em suas residências tem resultados testados empiricamente. Os países que adotaram essa política de forma ágil (Coreia do Sul e Japão, por exemplo) registram um “achatamento da curva” de pessoas doentes.
No Brasil, as medidas governamentais tomadas até o presente momento são insuficientes. Na esfera federal, houve a aprovação de uma legislação de emergência, a Lei nº 13.979/2020, cuja votação em regime de urgência (justificável) se deu sob a chantagem (inaceitável) do Poder Executivo, que condicionou o resgate de brasileiros em Wuhan, na China, epicentro da pandemia, à aprovação do projeto.
Essa normatização estabelece regime de isolamento e quarentena para infectados, silenciando completamente sobre o resguardo social do conjunto da população.
Também foi editado o Decreto nº 10.282/2020, de 20 de março, com a definição dos chamados serviços e atividades essenciais.
Na esfera estadual de São Paulo, para tomar apenas um exemplo, o governador João Doria, em sintonia com a Assembleia Legislativa estadual, vem adotando uma política pretensamente “gradualista” que mal esconde o critério discriminatório.
Sucedem-se decretos relacionados com a crise epidemiológica, com essa “lógica de círculos concêntricos”, sob a qual há um evidente corte de classe. No Decreto Estadual de SP nº 64.862/2020, de 13 de março, constou a suspensão das aulas na rede pública de ensino e a proibição os eventos com mais de quinhentas (500) pessoas. Além disso, emitiu apenas uma mera recomendação para adoção nesse âmbito por parte do setor privado.
O Decreto Estadual SP nº 64.864/2020, de 16 de março, instituiu o teletrabalho para servidores catalogados em grupo de risco, a saber: idosos (idade igual ou superior a sessenta anos), gestantes e portadores de doenças respiratórias crônicas, cardiopatias, diabetes, hipertensão ou outras afecções que deprimam o sistema imunológico.
O Decreto Estadual SP nº 64.865, de 18 de março, estende aquela recomendação de suspensão de atividade constante do primeiro decreto aos shopping centers, galerias e estabelecimentos congêneres e às academias ou centros de ginástica.
Somente em 20 de março, o Decreto Estadual SP nº 64.879/2020 reconhece o estado de calamidade pública, suspendendo atividades nos parques estaduais, cursos de qualificação – Programas de Qualificação Profissional e de Transferência de Renda Via Rápida e Novotec, atendimento presencial no Poupatempo, Centrais de Atendimento ao Cidadão, Junta Comercial do Estado de São Paulo–Jucesp e Departamento Estadual de Trânsito–Detran-SP. Além disso, colocou à disposição os servidores responsáveis por atividades não essenciais, determinando que os responsáveis por atividades essenciais as executem de forma presencial ou mediante teletrabalho.
Por fim, ao menos até o momento da redação desse texto, foi anunciado no dia 21 de março pelo próprio governador, em entrevista coletiva de imprensa, a adoção de regime de quarentena pelo período de quinze (15) dias, a partir da terça-feira, 24 de março, sendo que o decreto respectivo deverá ser publicado na segunda-feira antecedente.
Essa última decisão estadual, que deveria ter amplo efeito sobre todos os setores do mundo do trabalho, é carregada de critérios claramente discriminatórios, sem justificação nenhuma para a seletividade adotada no regime de quarentena, portanto, é um ato inconstitucional, carregado de preconceitos.
A informação do governador, replicada pela imprensa, é de que os setores de comércio e serviços estão abrangidos, com a exclusão do setor industrial. Alguns órgãos de comunicação destacaram esse aspecto, de que “indústrias devem continuar operando, assim como as forças de segurança”.
O Decreto afronta as regras da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que define de forma clara quais são os serviços essenciais, com a seguinte fórmula: “São serviços essenciais aqueles cuja interrupção poderia colocar em risco a vida, a segurança ou a saúde da pessoa em toda ou parte da população” (Boletim Oficial, vol. LXII, 1983, série B, nº 3, 230º informe, caso 1173, Parágrafo 577).
Além disso, a OIT chegou à conclusão, de acordo com esse critério que veio sendo aperfeiçoado durante vários anos, que não são essenciais os seguintes serviços, entre outros: trabalhos portuários em geral; manutenção de aeronaves; bancos; metalurgia; ensino; a Casa da Moeda; serviços gráficos do Estado; monopólios estatais do álcool, do sal e do fumo; a indústria petrolífera e suas plataformas marítimas; o setor de mineração e, em circunstâncias normais, o transporte em geral, inclusive o transporte metropolitano. (OIT – Liberdade Sindical, Parágrafos 402-408).
A Constituição da República de 1988, em seu artigo 196, exige o “acesso universal e igualitário às ações e serviços para […] promoção [da saúde]”.
Entre nós, mesmo a normatização repressiva da greve, que amplia o rol de serviços e atividades essenciais, define como “necessidades inadiáveis da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população” (Lei nº 7.783/1989, artigo 11, parágrafo único).
Também o recente decreto editado pelo governo federal relaciona os serviços e atividades essenciais, sem indicar a indústria entre estes, por razões óbvias (Decreto nº 10.282/2020, citado acima).
O “gradualismo” do governador de São Paulo protege os trabalhadores dos setores de serviço e do comércio, bem como os da administração pública e do setor privado que podem exercer funções em regime de teletrabalho, expondo todo o operariado fabril ao contágio. Isso não é gradualismo, é um ato criminoso. Já a lentidão e até omissão de inúmeros outros governadores e prefeitos são a expressão de que, mais uma vez, os trabalhadores, os pequenos proprietários e os mais pobres são expostos à morte, quando confrontados com os interesses do capitalismo.
Na Itália, com um quadro gravíssimo de avanço da Covid-19, foi adotado um regime de quarentena seletiva, em regiões de grande concentração industrial (norte do país). Os resultados são desastrosos e as greves contra o risco de morte estão pipocaram por lá com destacada força.
A Convenção nº 155 da OIT exige um tratamento igualitário que atenda a toda a população empregada, com a definição de “uma política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio-ambiente de trabalho” (item 4.1).
A Constituição da República, por seu turno, exige “o atendimento integral, com prioridade para as ações preventivas” (CR, artigo 198, II), além de estabelecer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, sendo garantida a “inviolabilidade do direito à vida (CR, artigo 5º, caput).
A seletividade adotada pelos governantes é criminosa, na medida em que expõe uma parcela da população ao contágio, sem qualquer justificativa. O Código Penal prevê pena para a conduta de “propagação de germes patológicos” (Código Penal, artigo 267), que tem pena de até 15 anos de reclusão, que é aplicada em dobro se “do fato resulta morte”.
Papel dos sindicatos frente à omissão das autoridades
Cabe aos sindicatos um protagonismo no enfrentamento da crise sob a perspectiva de classe. As medidas dos governos federal e dos governos estaduais são contrárias aos interesses do trabalho, favorecendo o capital e seus detentores.
A prioridade é a defesa da saúde e do resguardo social do conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras. Mas também é essencial defender salários e direitos nessa crise.
Redução de salários num momento de tamanha gravidade é mesmo impensável. As propostas do governo federal – que chegou ao ponto de anunciar a suspensão dos salários por quatro meses, ecoando as reivindicações do patronato ganancioso, não podem ser implementadas. É inconstitucional qualquer tentativa de afastar os sindicatos da negociação coletiva, para pretender a coação direta sobre cada indivíduo no local de trabalho.
As alternativas para a manutenção do patamar civilizatório são: a adoção de um regime de licença remunerada durante os períodos de quarentena; a concessão de férias coletivas; a instituição da suspensão dos contratos de trabalho com recebimento de parcela d0 Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT (lay-off), conforme a previsão da CLT, em seu artigo 473-A.
Os fundos públicos têm sua existência vinculada às situações de necessidade. O Tesouro deve capitalizar esses mecanismos, suspendendo o pagamento da dívida pública aos banqueiros, que devem ser obrigados à essa contrapartida à sociedade. O parasitismo rentista encontra claros limites nessa ameaça à própria civilização. No mesmo sentido, temos de exigir a imediata suspensão da EC-95.
A paralisação momentânea da produção é inevitável. À manufatura não se possibilita o teletrabalho (home office). Não existe o home-bancada, o home-reboco ou a home-linha-de-produção.
Justamente por essa impossibilidade, a saída é impedir a concentração de pessoas no transporte coletivo até as fábricas e nas linhas de produção, em que o risco de contágio é imenso. Todas essas contratações coletivas devem prever a estabilidade no emprego, como garantia contra o caos social que demissões em massa provocariam.
Os dirigentes e ativistas devem estar ao lado da base de representação. É hora de urgências e a elevação da consciência de classe deve ser o fruto dessa crise humanitária. Assim, nossas demandas e lutas devem incorporar todos os trabalhadores autônomos, a quem devemos defender uma imediata renda básica, e os pequenos proprietários e comerciantes. Da mesma forma é urgente que se estenda as parcelas do seguro desemprego até alcançarmos o absoluto controle dessa pandemia.
Caso o patronato relute em negociar uma saída para a garantia das vidas, a única alternativa é a greve. Desde as tentativas de acordos ou contratos coletivos especiais até os casos em que se torne necessário o uso da greve vamos precisar da mais ampla unidade de todas as centrais sindicais e organizações do movimento, bem como das instituições que têm como razão de ser de sua existência a defesa dos que vivem do trabalho. Vemos que qualquer postura que se afaste desse olhar classista e se permita mergulhar na lógica dos “interesses comuns” com o grande capitalista, vai contra a real necessidade dos da classe trabalhadora, ainda mais nesse caótico estado de coisas, onde a vida está em grave risco.
Greve geral em defesa da vida, já!
Fora Bolsonaro, Mourão e Guedes.
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Aristeu César Pinto Neto – Advogado do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e
Atnágoras Lopes – Secretaria Executiva Nacional da CSP-Conlutas
Coletivo Jurídico da CSP-CONLUTAS
Fonte: CSP Conlutas