No RS, quase 50% das prisões em flagrante contrariam lei e não chegam às audiências de custódia
Em dezembro, o Brasil passou a Rússia pela primeira vez e se tornou um dos três países com a maior população carcerária do mundo. Atrás apenas de Estados Unidos e China. Enquanto o país asiático tem uma média de 118 presos a cada 100 mil habitantes, o Brasil atinge a marca de 342. Entre os fatores que ajudaram a alavancar os números, registrando 699 mil presos no país, em 2015, estaria o uso “abusivo” de prisões preventivas. Cerca de 40% dos presos brasileiros, hoje, estão dentro das prisões sem condenação, à espera de julgamentos.
Em 2015, porém, o país instituiu um mecanismo que deveria reverter a situação: as audiências de custódia. Por lei, desde então, toda pessoa presa em flagrante no Brasil deve ser apresentada perante um juiz, num prazo 24 horas, para ser ouvida, em audiência com a participação de membros do Ministério Público, da Defensoria Pública ou de advogados, onde o juiz decide por manter ou não a prisão preventiva. A lei nasceu de um projeto em parceria com o Tribunal de Justiça de São Paulo.
Na prática, ela não ajudou a diminuir o encarceramento. No Rio Grande do Sul, por exemplo, quase 50% dos presos não estariam sendo apresentados às audiências. O dado é apontado por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da faculdade de Direito da PUCRS, coordenador do Relatório do Conselho Nacional de Justiça, que analisa as audiências de custódia em seis capitais, publicado este ano. “É uma situação gravíssima”, diz ele.
As dificuldades para se cumprir a regra aqui, segundo ele, seriam da própria polícia em fazer os encaminhamentos dos presos até o local da audiência e pelo fato de que, em Porto Alegre, elas acontecem dentro do Presídio Feminino Madre Pelletier e no Central (atual Cadeia Pública). “O nosso presídio está sendo administrado pela polícia militar há bastante tempo. Um dos motivos das audiências de custódia é verificar se houve violência policial, se ela pode ser apurada por meio de exame de corpo de delito”.
O relatório, encomendado pelo CNJ ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foi o primeiro a analisar a aplicação das audiências pelo país. Ele focou em informações de seis capitais: Porto Alegre, Florianópolis, São Paulo, João Pessoa, Brasília e Palmas. O grupo utilizou dados estatísticos gerais disponibilizados pelo Conselho, além de realizar entrevistas com juízes, promotores e advogados, de analisar mil audiências e avaliar acórdãos dos tribunais de justiça estaduais, que julgavam prisões preventivas, para entender em que situações ele teria acesso a um relaxamento da prisão.
“O que acabamos constatando, de maneira geral, é que as audiências de custódia não impactaram no número de presos provisórios. Isso se relaciona também com uma lei de 2011, ainda no governo Dilma, que foi a lei das cautelares do processo penal”, explica o professor gaúcho.
Pela chamada lei das cautelares, os juízes passaram a contar com outras formas de manter a prisão, como monitoramento eletrônico. Ainda assim, a tendência geral observada na prática é de que os critérios usados para manter as preventivas antes da lei, continuam sendo aplicado. Pessoas que antes eram liberadas, agora dependem de condições previstas na lei. O número de presos provisórios em todo o país seguiu em crescimento.
Se observa, por exemplo, segundo Ghiringhelli, que quando um indivíduo é acusado de crimes como tráfico ou roubo, os juízes tendem a manter a preventiva, ainda que não haja qualquer sinalização na lei para isso. Pelo relatório, 54% dos presos tiveram sua prisão convertida em preventiva. Em casos de roubo, o índice salta para 86,8%. Em comparação, 75% dos suspeitos de homicídio são mantidos em provisórias.
Antecedentes, mesmo passagens pelo sistema socioeducativo ou ocorrências sem condenação, também pesam para a manutenção. E há “severidade maior” quando os presos são negros.
“O que se conclui é que há uma mentalidade punitiva no poder Judiciário que leva, mesmo com tentativa de mudança legal, mesmo com mecanismos de mudança como as audiências de custódia, a esbarrar nessa mentalidade que está presente tanto em juízes de primeiro grau, que são os que fazem as audiências, quanto nos tribunais superiores”, afirma.
Os números de Porto Alegre
Em Porto Alegre foram analisados 198 formulários. Segundo os pesquisadores, as audiências ocorrem todos os dias, na parte da manhã e são muito “irregulares”. Enquanto alguns dias dez pessoas eram atendidas, em outros se registravam apenas um ou dois atendimentos. A cidade ainda apresentou o maior índice de conversão de pena para preventiva: 72,2% dos casos.
“Em audiência, apenas 1% dos presos tiveram o flagrante relaxado, 22,8% tiveram a liberdade provisória concedida mediante a aplicação de medidas cautelares alternativas à prisão, e em 3% dos casos a liberdade provisória foi concedida sem a aplicação das medidas cautelares”, diz o relatório.
O estudo mostra ainda que 33,8% dos presos não apresentaram antecedentes criminais, 68,2% declararam possuir residência fixa, 22,6% foram presos como suspeitos, 20,4% como receptadores e 17,2% por tráfico. Para 59,1% dos presos, o juiz não fez qualquer referência ao crime que havia motivado a prisão, em 22,2% dos casos somente se mencionou o tipo penal, sem maiores detalhes. A maioria, 85,9% dos presos, receberam orientações do juiz para que não relatassem fatos sobre o mérito. Apenas 27,8% foram informados sobre o direito de permanecer em silêncio, enquanto 68,7% sobre a finalidade da audiência.
A polícia militar, responsável pela administração do presídio onde ocorrem as audiências, estava presente em 100% dos casos. O que atrapalharia na apuração sobre ocorrências de violência ou não na hora das prisões. Enquanto 92,4% dos presos em Porto Alegre foram questionados sobre, pelo juiz, 29,3% afirmaram terem sofrido violência policial.
O estudo aponta que o tempo máximo de duração das audiência foi de 15 minutos. Cerca de 16,1% das audiências duraram cinco minutos, 72,6% duraram nove minutos. “A celeridade como marca registrada de realização das audiências de custódia acabou se constituindo em importante obstáculo para a coleta dos dados da pesquisa. O curto espaço de tempo entre as audiências, inviabilizou em várias ocasiões o preenchimento de todos os campos do formulário por parte dos pesquisadores”, diz o relatório.
A maioria dos presos (56%) eram negros. O estudo lembra ainda que, na capital gaúcha, a população negra corresponde a 20,2% dos habitantes, enquanto brancos são 79,8%. O estudo mostra ainda que, enquanto 68,7% dos brancos tiveram a prisão em flagrante convertida para preventiva, no caso dos presos negros o número sobe para 73,9%. Nos casos em que houve concessão de liberdade provisória, os índices entre brancos é de 25,3%, enquanto para negros 21,6%.
Falta de padronização nas capitais
Ghiringelli diz que foi surpreendido pela falta de padronização para implementação das audiências, nas diferentes capitais do país. Em Palmas, Tocantins, por exemplo, as diferentes Varas do Foro fazem revezamento para atender nas audiências de custódia, incluindo no rodízio varas específicas de área cível, tributária e de família. Em Florianópolis, Santa Catarina, uma juíza sozinha é encarregada de todas as audiências. Enquanto em Porto Alegre, toda audiência é precedida por um “filtro” com o juiz do plantão do Foro.
“Isso levou que os números das audiências de custódia em Porto Alegre sejam os que demonstram maior conversão de prisões em flagrante em prisões preventivas. É onde se prende mais. A justificativa dada aqui é esse filtro anterior, que não existe em outros lugares”, salienta.
Um relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA) denuncia que a explosão nos números de presos preventivos não é exclusividade do Brasil. Em toda a América Latina, a situação é preocupante. “A Comissão Interamericana considera, em primeiro lugar, que o uso excessivo desta medida é contrário à essência mesma do Estado democrático de direito, e que a instrumentalização fática do uso desta medida como uma forma de justiça célere, da que resulta uma espécie de pena antecipada, é abertamente contrária ao regime estabelecido pela Convenção e pela Declaração Americana”.
“O que isso produz na prática? O reforço dos grupos criminosos, que dominam o ambiente carcerário, e se valem dessa superlotação para coptarem novos membros. Em presídios completamente lotados, sem o controle do Estado, a pessoa que entra lá, sem ter sido julgada, em situações muitas vezes irregulares, acaba tendo que se aproximar desses grupos como forma de garantir a sua própria sobrevivência”, aponta Ghiringelli.
As audiências seriam uma ferramenta para reverter o cenário. O problema é que esbarram em questões de estrutura e na cultura do próprio Judiciário. “[A aplicação plena] implicaria em toda uma reestruturação não só legal, mas também de funcionamento de todos esses órgãos, que exige investimento, formação, um direcionamento da Justiça nesse sentido. Há um discurso no Brasil, de que ‘a polícia prende, a Justiça solta’. Inclusive, secretários de segurança dizem isso. Na verdade, se fosse assim, as prisões não estariam lotadas. O papel do Judiciário é analisar regras que permitam que essa prisão seja mantida ou se não é esse o caso”.
Por Fernanda Canofre
Fonte: Sul21